Coluna Vitor Vogas
Papa Francisco e “Conclave”: a humildade e o elogio da dúvida
“Benditos os que têm a humildade de duvidar das próprias certezas”, ensina-nos o protagonista do filme sobre a sucessão papal. Benditos também os que acolhem quem não pensa e vive como nós, ensinou-nos Francisco com o seu exemplo em vida

Papa Francisco. Foto: Reynaldo Amadeu/Pixabay
Com a morte do Papa Francisco na última segunda-feira (21), uma palavra é repetida sem parar no mundo católico e fora dele: conclave. A palavra dá nome ao filme que levou o Oscar de melhor roteiro adaptado no mês passado. Por coincidência e sorte comercial, “Conclave” acaba de chegar a plataformas de streaming, pouco antes da despedida de Bergoglio. Dirigido por Edward Berger e estrelado por Ralph Fiennes, o longa trata exatamente da mesma situação, mas na dimensão ficcional: com o chefe da Igreja Católica morto, os cardeais do mundo inteiro se reúnem no Vaticano para, em votação secreta, escolher seu sucessor.
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Responsável por dirigir o conclave está o Cardeal Lawrence, interpretado por Fiennes. No primeiro dia dos trabalhos, antes de os eleitores se dirigirem à Capela Sistina e se enclausurarem para o primeiro escrutínio, Lawrence conduz uma prece perante os colegas. Falando com o coração, como ele mesmo diz, faz um pronunciamento surpreendente – que acaba, involuntariamente, lançando sua candidatura (spoiler: ele não quer e são será o escolhido). Suas palavras causam rebuliço. A cena é formidável, um dos pontos altos do filme. No lugar de um discurso protocolar, o personagem faz o que pode ser definido como um grande “elogio da dúvida”, da necessária capacidade de duvidar.
A força do discurso está na quebra de expectativas. A Igreja Católica Apostólica Romana é o lugar das certezas inquebráveis, das convicções vigorosas, dos dogmas milenares. E ali estão reunidos os representantes máximos da Igreja, o suprassumo dos líderes católicos – portadores, portanto, das certezas que alicerçam a fé cristã. A princípio, não há espaço para dúvida naquele ambiente, em plena cúpula da Santa Sé. Aliás, não há lugar para incerteza na comunidade cristã. Ter fé é não duvidar, certo? Não de acordo com Lawrence. Para ele, é justamente o contrário: o maior dos “pecados”, o mais temível de todos, é, precisamente, o da certeza.
“São Paulo disse: ‘Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo’. Para trabalharmos juntos, para crescermos juntos, devemos ser tolerantes”, prega ele aos colegas cardeais. “Nenhuma pessoa ou facção deve buscar dominar a outra. E, falando aos efésios, que eram uma mistura de judeus e gentios, Paulo nos lembra que o presente de Deus à Igreja é a sua variedade. É essa variedade, essa diversidade de pessoas e ideias, que confere força à nossa Igreja. Ao longo de muitos anos a serviço da nossa Igreja Mãe, devo dizer que há um pecado que passei a temer acima de todos os outros: o da certeza”.
Como argumenta o personagem – para inquietude de muitos pares, sobretudo os mais conservadores –, “a certeza é a inimiga mortal da tolerância”.
“A certeza é a grande inimiga da união. A certeza é a inimiga mortal da tolerância. Nem mesmo Cristo tinha certeza no final. ‘Meu Deus, por que me abandonaste?’, ele gritou, em sua agonia, na nona hora na cruz. Nossa fé é algo vivo justamente porque caminha de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certezas e nenhuma dúvida, não haveria mistério. E, portanto, nenhuma necessidade de fé. Oremos para que Deus nos conceda um papa que tenha dúvidas. Que ele nos conceda um papa que peque, que peça perdão e que siga em frente.”
O discurso de Lawrence nos fala da capacidade de questionar (e de se questionar). Ele exorta seus colegas a duvidar daquilo em que acreditam e colocar à prova sua fé.
Ora, duvidar pressupõe humildade. É um ato de humildade sair do seu lugar de “dono da verdade” para contestar as próprias convicções, admitir que talvez você não esteja inteiramente certo (pelo menos, não o tempo todo), estar disposto a ouvir as “verdades” do outro e aceitar que há uma chance de que ele, à sua maneira, também esteja parcialmente certo.
O discurso do personagem também nos remete fortemente a Francisco, seu legado e seu exemplo vivo. Jorge Bergoglio era na certa “um homem que tinha dúvidas”.
A característica máxima de Francisco, uma das mais celebradas nestes dias de homenagens fúnebres, era sua extrema simplicidade, rimada com sua humildade.
É claro que, como líder maior da Igreja Católica, Francisco tinha convicções muito sólidas que alicerçavam sua fé. Igualmente evidentes eram sua erudição teológica e sua capacidade intelectual. Mas ele jamais se portou como um homem infalível, arrogante e dono da verdade, a julgar e condenar quem não comungasse de suas crenças.
Mais importante: Francisco aceitava a todos. Acolhia igualmente quem pensasse e se comportasse de maneira diferente, quem não seguisse e não vivesse de acordo com os dogmas católicos. Como não cessava de repetir, todos era bem-vindos em sua Igreja. Todos, sem exceção. Ao lado da humildade, suas maiores marcas eram a tolerância, a aceitação das diferenças, a luta incessante pela paz e a união dos povos, o poder de agregação. As palavras de Lawrence aqui ecoam: “É essa variedade, essa diversidade de pessoas e ideias, que confere força à nossa Igreja. […] A certeza é a grande inimiga da união. A certeza é a inimiga mortal da tolerância”.
No momento de sua morte, o exemplo de Francisco se faz ainda mais relevante quando olhamos ao redor e percebemos a quantidade absurda de pessoas, inclusive espalhadas pelo mundo político, que se comportam da maneira oposta à advogada por Lawrence. A humildade e a tolerância de que Francisco deu testemunho vivo se invertem nessas supostas “lideranças religiosas”, pretensos “modelos de virtude”, autoproclamados “cristãos exemplares”.
O que não falta por aí são mulheres e principalmente homens que se intitulam cristãos, com mentalidade rasa, inversamente proporcional ao ego, leitura mínima (a Bíblia, e mesmo assim mal lida), a se arvorar em porta-vozes do cristianismo. Sabe-se lá com qual autoridade e com qual legitimidade, metem-se a determinar “o que é ser cristão”, “o que é agir como verdadeiro cristão”… O resultado é uma enxurrada de preconceitos e ignorância de fazer corar Francisco no túmulo em Santa Maria Maggiore.
Quando essa atitude prepotente invade o universo político – isto é, quando o “dono da verdade religiosa” tem mandato –, os “baluartes do cristianismo” vão além: julgam-se divinamente iluminados para decretar que “cristão de verdade só vota assim”, “cristão que é cristão não vota em determinado partido”, “quem vota em tal candidato não é cristão de verdade”. Estão por aí aos montes. Um deles estará em Vitória daqui a dois dias. E até cobrará ingresso para dizer esse tipo de coisa.
O discurso “vende”, é claro, ainda mais neste mundo dominado pelas redes e as bolhas sociais, até pelo seu facílimo apelo das simplificações binárias e infantis: o mundo se divide em dois lados; num residem todo o mal, os pecados e o Diabo; no outro, todo o bem, as virtudes e Nosso Senhor. Se quiser pensar o mundo político, basta sobrepor o mesmo esquema, uma cartolina sobre a outra.
Obviamente, o mundo é muito mais complexo que isso, inclusive o mundo político. E, para qualquer um fora da bolha, a arrogância de quem se arvora em “coach do cristianismo” chega a ser assombrosa.
Tão imensa quanto a humildade de Francisco e a extensão do seu abraço sempre pronto a acolher a todos.
Sem distinção.
Adendo
O que move o mundo é a curiosidade, a humildade e a honestidade intelectual. Ser honesto intelectualmente implica assumir que não se sabe quase nada. Os maiores pensadores da humanidade são justamente aqueles que têm a humildade de admitir que não sabem tudo e de buscar aprender o que não sabem. É esse gesto intelectual que proporciona a produção de conhecimento original e que gera o progresso intelectual da humanidade.
Um velho professor meu dizia, em consonância com Lawrence: “Tenho muito medo de quem acha que encontrou a verdade. Mas tenho mais medo ainda de quem tem certeza disso”.
