Coluna João Gualberto
Coluna João Gualberto | Pedro Nunes
Em um dos contos que compõem o livro Vilarejo e outras histórias, ele conta sua experiência na única livraria que existia na cidade
Este é o terceiro artigo que publico neste espaço e que trata da produção literária em nosso estado com um olhar analítico. Tento fazer uma espécie de sociologia do cotidiano capixaba. Já escrevi sobre Renato Pacheco, Getúlio Neves e neste texto analiso a obra de Pedro Nunes. É uma literatura pura, simples, direta, rica e desenhada com esmero. Não me parece um texto desses que se escrevem às pressas. É um autor dos detalhes, das palavras escolhidas uma a uma.
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Pedro retrata o Espírito Santo rural em que ele viveu, no fim dos anos 1960 e início dos 1970. Digo rural mas devia dizer interiorano, ou das pequenas cidades do Sul do nosso estado. É quase antropológico, não pretende ser mais do que uma história bem contada sobre personagens que tangenciaram a sua vida. Aliás, nos bons autores, cada personagem é uma síntese das muitas vidas com as quais teve contato, mas com os exageros próprios da ficção. Sem esse tom ficcional, esse exagerar de atributos conhecidos, não se fazem bons romances, não se escrevem bons livros.
Pedro Nunes mostra-se como o bom capixaba que é, nascido e criado em São José do Calçado, município que longe não fica do Caparaó e nem dos nossos limites com Minas Gerais e Rio de Janeiro. Uma pequena cidade pacata e de modesta vida social e cultural. Tanto que num dos contos que compõem o livro Vilarejo e outras histórias ele conta sua experiência na única livraria que existia na cidade, que aliás fechou com poucos meses de vida, justamente por não ter vendido quase nada.
Nesse universo rural e da pequena Calçado escreveu A Tarde dos Porcos, Menino e Vilarejo e outras histórias. São livros que nos remetem ao universo das infâncias dos que nasceram naqueles tempos, em especial no Sul do Espírito Santo, mas também podendo ser generalizado para todo o nosso estado e mesmo para o Brasil desse mundo caipira, como diriam os sociólogos da USP de décadas atrás.
São histórias de dentro da casa, da autoridade paterna temperada pelo tom amoroso da mãe, dos meninos da rua, das brincadeiras ora violentas ora ingênuas, da asfixiante presença das primas inacessíveis, do medo de assombrações. Esse era de fato o universo infantil perverso e ingênuo daquele mundo que vai morrendo. Tudo narrado de uma forma doce e, ao mesmo tempo, dura. Ingênua, mas cheia de maldades. Esse mundo em que Pedro Nunes viveu também era o meu mundo. Era o mundo da minha geração. Por isso falo de uma certa sociologia do cotidiano capixaba. No caso de Pedro Nunes, em algumas de suas obras, esse é o cotidiano das crianças, dentro de um universo muito especial.
Outra dimensão da obra de Pedro Nunes é a dos que, digamos assim, deram errado. São moradores das periferias de Vitória, ou dos submundos da cidade grande, de uma forma genérica. Os contos reunidos em A Última Noite dão uma prova clara disso. Os personagens habitam um bairro que em tudo se assemelha à região de São Pedro, uma das mais pobres de Vitória na época retratada. São bêbados, prostitutas, desesperançados de uma forma geral, mulheres vítimas da vida. Aqui uma marca muito forte é a violência. Nesse mundo que a urbanização desumana criou entre nós, tudo é provisório, os afetos surgem misturados à perversidade ou mesmo à brutalidade. São corpos cansados, violentados, perdidos, vidas vazias de significado.
Deixei por último Aninhanha, o livro mais surpreendente e mais inesperado dentre as obras de Pedro Nunes por mim lidas. Trata-se do relato de uma miserável criatura, que vive uma vida pobre e tosca. Abandonada ao nascer, foi criada pela personagem que dá nome ao livro. Uma catadora de coisas que sai toda manhã com seu carroção à procura de garrafas que vende no fim do dia. À noite recebe homens em sua palafita em troca de alguns dracmas. Uma pessoa solitária e com visíveis problemas cognitivos, que se embebeda com frequência. É uma história cujo dia a dia se repete. A grande mestria do livro está mesmo na construção linguística, na narrativa explosivamente monótona dessas vidas vazias.
Os que foram expulsos do mundo caipira para as periferias da capital trazem consigo uma espécie de código de honra do matuto, como bem definiu Darcy Ribeiro. Nesse código de honra estão o machismo, a violência, nossos traços identitários mais fortes, mas também a fofoca – sobretudo a fofoca. Ela, sempre ela, no coração das nossas coisas, do nosso imaginário social. Essa maneira covarde de se enfrentar poucas vezes, de fato, frente a frente, mas de plantar maledicências pelas costas, um dos motores da nossa vida em sociedade.
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