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Coluna João Gualberto

Coluna João Gualberto | Arcaísmo como projeto

Brasil foi produzido socialmente a partir de um projeto marcado pelo que chamam de arcaísmo

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Arcaísmo como projeto. Pintura feita por Willem J. Blaeu, em 1635

Arcaísmo como projeto. Pintura feita por Willem J. Blaeu, em 1635

Li, mais uma vez recomendado pela professora Adriana Campos, o excelente livro Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil em uma Sociedade Colonial Tardia – Rio de Janeiro 1790 e 1840, dos historiadores Manolo Florentino e João Fragoso. O longo título da obra já expressa bem o seu conteúdo, uma análise do que se passou entre as elites econômicas e seu projeto político no Rio de Janeiro, entre o fim do século XVIII e início do XIX. A província, afinal, transformara-se no epicentro do poder colonial em nossas terras. Muito do que foi analisado no trabalho presta-se à compreensão da dinâmica econômica e social do Brasil todo. Havia uma relação estreita entre os estamentos da nossa sociedade daqueles tempos. Os fenômenos regionais já guardavam relação entre si, desde a colônia, como muito bem prova a extensão territorial da exploração do pau-brasil, da cana-de-açúcar e o impacto abrangente da exploração do ouro, sobretudo nas Minas Gerais.

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O que os dois autores mostram, com toda clareza, é que o Brasil foi produzido socialmente a partir de um projeto marcado pelo que chamam de arcaísmo. No caso estudado ele expressa, para dizer de forma muito simplificada, uma junção entre as sociedades do Antigo Regime – como aquela que havia na França pré-revolucionária – e o escravismo moderno.

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Nas sociedades tradicionais, como as define Anthony Giddens, a aristocracia tinha um  regime de privilégios impensáveis para os nossos dias, segundo os quais até mesmo a justiça não se deveria fazer de forma igualitária. O justo era proteger os que tinham uma linhagem nobre. Um bom juiz português desse período deveria, antes de tudo, impedir que um fidalgo pudesse perder qualquer causa para um homem comum. A questão da justiça era não permitir que os privilégios fossem extirpados. A sua função central na velha ordem era a de fazer com que nada mudasse. Havia uma espécie de engessamento social, no qual também a religião católica, no nosso caso e em muitos outros, teve papel central, acentuadamente no Brasil, com a presença dos jesuítas, da inquisição e de seus terríveis e temidos tribunais. Os jesuítas eram de fato a ordem religiosa mais forte politicamente antes de sua expulsão, em 1759, por decisão do Marquês de Pombal, primeiro-ministro do governo lusitano. A ordem dos jesuítas tinha mais poder do que as demais e o exercia de forma inequívoca, sendo um dos pilares do arcaísmo brasileiro.

Outra sustentação importante daquela velha ordem eram as visitas do Santo Oficio, como espaço de manutenção de coesão de princípios fundamentais da ética daqueles tempos. Os julgamentos feitos pelo tribunal, que asseguravam a manutenção de uma fé católica extrema e intocável, não distribuíam as penas de forma imparcial. Isso muito bem demonstra Ronaldo Vainfas em Trópico dos Pecados, sobretudo porque os fidalgos não poderiam ser alcançados pelas punições mais graves, que eram destinadas aos cristãos-novos e às pessoas comuns. As bases de funcionamento desigual das sociedades do Antigo Regime seriam ainda mais potencializadas entre nós pela presença de escravizados e indígenas, que sequer eram considerados pessoas, como as originárias do continente europeu. A desigualdade nesse caso era tão brutal com os grupos sociais mantidos pela pedagogia do medo – os escravizados, humilhados e massacrados pela ordem arcaica – que ampliavam enormemente as desigualdades inerentes ao arcaísmo histórico.

No início do século XIX Brasil e Estados Unidos tinham economias de igual potência. No no final daquele século os EUA tinham sido alavancados para ocuparem um lugar importante em todo o mundo, ao passo que nós não conseguimos fazer o mesmo. Uma das razões foi o projeto arcaico das elites brasileiras e lusitanas. Nosso atraso social foi projetado para acontecer. Não foi obra do acaso. Foi escolha política mantida longamente através do tempo, como muito bem mostram Manolo Tolentino e João Fragoso.

Para os autores, o arcaísmo tem, no bojo de seus projetos, duas vertentes principais: a primeira foi um processo econômico concentrador de riquezas no topo da hierarquia social, desde o início de nossa colonização. A segunda foi a manutenção de uma engenharia que se constituiu produzindo muita pobreza.

Criamos também um imaginário social que naturalizou essa pobreza, eximindo as elites da responsabilidade de construir um processo que a eliminasse ou ao menos reduzisse suas dimensões. Mais do que naturalizar a vida das pessoas pobres, fizeram uso do mesmo tratamento para a sua criminalização.

A resposta natural para qualquer ação dos desfavorecidos sempre foi a truculência policial, derivada da irresponsabilidade social de nossas elites. Creio, portanto, que ainda somos produtos desse imaginário perverso há tantos séculos construído e que ainda nos invade no presente, dando longa vida aos nossos impasses.

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João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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