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Dia a dia

Tetraplégico passa na Ufes, mas não consegue frequentar aulas

O jovem foi aprovado em 1º lugar no vestibular de 2023 para o curso de Ciências Contábeis da Universidade Federal do Espírito Santo

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Kenau Martins de Souza. Foto: Arquivo Pessoal

Kenau Martins de Souza. Foto: Arquivo Pessoal

Keanu Martins de Souza é um jovem tetraplégico de 18 anos, residente em Guarapari, que enfrentou um tumor no cérebro quando era criança. Infelizmente, as sequelas da doença ainda o acompanham, mas isso não o impediu de alcançar grandes conquistas. O jovem foi aprovado em 1º lugar no vestibular de 2023 para o curso de Ciências Contábeis da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em Vitória. Com muito esforço, por conta de suas dores crônicas, ele comparece à sala de aula três vezes por semana. Mas nos dias de crise, quando as dores se intensificam, a aula presencial se torna inviável. Aliás, até mesmo a concentração necessária para os estudos se torna impossível. E daí surge um problema, até agora sem solução: a Ufes não oferece ensino a distância para o curso que Keanu escolheu, o que dificulta a frequência nas aulas.

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Em 2005, Keanu, na época com 1 ano, recebeu o diagnóstico médico de um Astrocitoma Pilocítico Grau II. Dali em diante, a vida de sua família mudou radicalmente. Daiana Reis, 36 anos, deixou marido e o filho mais velho, em Guarapari, onde moram, e passou a se dedicar a Keanu nos cuidados em Vitória. Foram longos meses de tratamento e quimioterapia e, nesse período, o menino ficou tetraplégico em consequência da doença. No final de 2006, a família pôde comemorar a cura do menino. Até que, aos 4 anos, Kenau foi diagnosticado novamente com o mesmo tumor. Nessa época, vieram novas sessões de quimioterapia e 36 sessões de radioterapia. E, novamente, ele venceu.

“De segunda a sexta-feira, eu ficava com ele no hospital. Deixei meu filho mais velho com o meu marido, que precisava trabalhar para nos sustentar, e eu ficava em Vitória. Sempre tivemos o suporte da Associação Capixaba Contra o Câncer Infantil (Acacci). Ele foi alfabetizado no hospital, aprendeu a ler e escrever por meio do Classe Hospital. Desde pequenininho, sempre disse que queria fazer faculdade. E ele conseguiu. E ficamos todos tão orgulhosos dessa conquista. Se você ver o diagnóstico dele, você não acredita. Ele não tem força no tronco, não consegue pegar nada com as mãos, mas ele junta uma na outra e escreve”, conta Daiana.

Keanu também foi aprovado em 1º lugar em Engenharia da Computação no Instituto Federal de Brasília (IFB). Desde o início do ano, o jovem universitário tem frequentado as aulas e se esforçado para realizar o sonho de se formar. “Sou o primeiro da minha família a entrar na faculdade. Eu estava indo para a fisioterapia, quando peguei o celular e vi que tinha passado, eu liguei para toda a família e contei para o pessoal da Acacci. Todos comemoraram juntos comigo”, lembrou o jovem.

A Acacci, atualmente, oferece ao jovem e à mãe o apoio logístico, com alimentação, hospedagem e transporte nos dias que ele está na capital. Também tem o serviço multidisciplinar, que é o atendimento, principalmente, pela fisioterapeuta, nutricionista e assistente social, e suporte socioeconômico. Esse auxílio permite que o jovem fique na capital de segunda a quarta-feira para as aulas presenciais das três disciplinas que cursa neste primeiro período. Após o almoço na sede da Acacci, o transporte o leva para a Ufes, onde é recepcionado e conduzido para a sala de aula por um monitor do Programa de Acessibilidade. Esse mesmo monitor o acompanha durante as aulas e o auxilia durante o tempo que está na Ufes.

Keanu e a mãe buscaram o Núcleo de Acessibilidade da Ufes, onde foram atendidos pela universidade em busca de uma solução. No entanto, até o momento, não conseguiram um acordo. “Eu sinto dores o tempo inteiro e já aprendi a conviver com elas. Eu tenho dores crônicos. Nos dias de crise, eu não consigo sequer me concentrar no que o professor está falando. E nos dias que estou em Vitória, eu concilio as aulas com a fisioterapia. Tudo isso me demanda muito e as dores se agravam. Eu tenho acesso às atividades on-line, mas nada é comparável com a explicação do professor. Eu entendo que não há EAD (Ensino À Distância) no curso, mas eu necessito de videoaulas. Seria primordial para o meu aprendizado”, pontuou.

O QUE DIZ A UFES?

Kenau na Ufes. Foto: Arquivo pessoal

Kenau na Ufes. Foto: Arquivo pessoal

A coordenação do Núcleo de Acessibilidade da Ufes (Naufes) informou que “o estudante Keanu esteve na sala do Núcleo acompanhado de sua mãe Daiana, no dia 14 de março deste ano (antes do início do semestre letivo) após convite da equipe técnica do setor. Nessa acolhida foi realizada a apresentação do Núcleo ao estudante, bem como foram apresentadas à equipe as necessidades específicas do aluno. No âmbito do Naufes, o estudante é acompanhado por um monitor de mobilidade e deslocamento, a fim de garantir seu trânsito nos diversos espaços do campus universitário”.

“Além dessa monitoria, foi enviado um e-mail ao Colegiado do curso de Ciências Contábeis com informações sobre o estudante para que a coordenação informe aos professores as possíveis adaptações necessárias dentro de sala de aula para Keanu. Nesse e-mail, também foi enviado o Manual de Acessibilidade, que traz orientações sobre como os professores podem proceder dentro de sala diante de um estudante com deficiência. Ainda, foi informada a necessidade de extensão de prazo para realização de prova escrita, pois o estudante possui dificuldade motora nos membros superiores, e extensão de prazo para a conclusão de curso, assim como a prioridade de matrícula, ambas asseguradas pela Lei 13.146 de julho de 2015 e pela Resolução nº 68/2017 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão”, disse a Ufes por meio de nota.

O Naufes destaca que Keanu, acompanhado pela mãe, frequenta semanalmente o Núcleo e a equipe sempre está à disposição, auxiliando nas demandas apresentadas. Até a presente data, Keanu e a mãe não trouxeram nenhuma dificuldade com relação à metodologias de ensino e avaliação dentro de sala de aula e também não informaram dificuldade com relação à conversa com os professores com a finalidade de estabelecer outras adaptações metodológicas.

QUAIS SÃO OS DIREITOS?

A Constituição Federal, diversos tratados internacionais e a legislação (como o Estatuto da Pessoa com Deficiência) garantem o direito à educação inclusiva, em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível dos talentos e habilidades das pessoas com deficiência.

‌Sobre o tema, há parecer do Conselho Nacional de Educação (n. 31/2012) que, com base em condições previstas em lei (Lei n. 9.394/96), prevê a concessão de regime especial para dicentes que não podem frequentar nem realizar avaliações da forma tradicional nas instituições de ensino.

A defensora pública federal; titular do 2º Ofício Cível (DPU/DF – 2cat.); membra integrante do Grupo de Trabalho de Proteção aos direitos de Pessoas Idosas e com Deficiência (GTPID-DPU) Raquel Brodsky Rodrigues alerta que dentre os requisitos previstos, consta a existência, em projeto político-pedagógico, de condições para o efetivo atendimento das necessidades desses estudantes. Por essa razão, há instituições de ensino que aplicam tal regime apenas para períodos temporários, geralmente inferiores a um semestre. Alegam ainda que a presença física é imprescindível para o desenvolvimento de algumas atividades, como estágio obrigatório.

“Contudo, durante a pandemia, foram editados atos normativos permitindo a adoção do ensino remoto emergencial, em todos os níveis de ensino. Tal cenário evidenciou que a presença em sala de aula pode, sim, ser flexibilizada, sobretudo ante o estado de evolução atual dos meios de informática e tecnologia. Há amplo reconhecimento no meio jurídico de que o direito à efetiva educação, mesmo que em favor de uma única pessoa, sobrepõe-se a eventual óbice prático alegado pelo Estado”, pontuou a defensora pública federal.

Segundo Raquel, isso faz com que, por exemplo, se possa cogitar a contratação de assistente acadêmico como meio viável para garantir que as aulas sejam acompanhadas à distância (facilitando a transmissão simultânea ou gravação da aula, bem como anotações). Estágios práticos também poderiam ser realizados de forma remota, adaptando-se assim o currículo às especificidades do dicente com deficiência. Não à toa, dentre as medidas previstas em lei, figura a de realização de plano de ensino individualizado como meio de inclusão de estudantes.

A adoção de medidas que permitam o acesso da pessoa com deficiência ao ensino deve ser acompanhada de providências voltadas à sua permanência, participação e aprendizagem. Ou seja, a inclusão promovida pelos meios de ingresso na universidade cai por terra se o capacitismo estrutural se impõe nas etapas seguintes.

“Pelo direito de a pessoa com deficiência contar com medidas individualizadas e coletivas não somente para ingresso, mas também para continuidade de seus estudos em instituições de ensino. Somente assim esse estudante terá direito à igualdade de oportunidades e não sofrerá injusta discriminação, conforme garantem diplomas normativos e a interpretação destes pelos Tribunais”, conclui a defensora pública federal.

COMO FUNCIONA O NAUFES?

O Naufes, segundo o Art.7º da Resolução nº 28/2015 do Conselho Universitário da Ufes, elabora, coordena e executa ações, serviços e pesquisas tendo por princípio a preservação dos direitos dos estudantes de graduação, pós-graduação e servidores que possuam algum tipo de deficiência, das pessoas que possuam necessidades especiais atendendo à diversidade humana no que se refere à acessibilidade em suas múltiplas dimensões.

Em cumprimento à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o Naufes diz aplicar os seguintes incisos dos Arts 28 e 30, tendo como competências: acolher, atender e encaminhar as demandas dos estudantes com deficiência de maneira integrada, interseccional e multidisciplinar, em parceria com as unidades acadêmicas e administrativas; contribuir para a elaboração de políticas de acessibilidade e inclusão na comunidade acadêmica; propor ações de acessibilidade em suas diferentes dimensões; fomentar projetos de ensino, pesquisa e extensão com foco na acessibilidade e inclusão.

Alguns serviços que são ofertados pelo Naufes ao longo do semestre letivo: atendimento e acompanhamento multidisciplinar; oferta de bolsistas/monitores de acompanhamento em sala de aula; oferta de bolsistas/monitores de mobilidade e deslocamento; laboratório de tecnologia assistiva, na Biblioteca Central; produção de materiais adaptados para os diferentes tipos de deficiência; produção e adaptação de material didático-pedagógicos para estudantes com deficiência.

Essas ações se fazem necessárias tendo em vista que, atualmente, a Ufes possui em média 446 alunos com deficiência na graduação presencial, 67 deles acompanhados pelo Naufes. A coordenação do Núcleo ressalta que é feito contato por e-mail com todos os alunos no início do semestre e, aqueles que desejam ser acompanhados, buscam o Núcleo para realizar o primeiro acolhimento e acompanhamento ao longo do semestre.

Atualmente, a equipe do Núcleo de Acessibilidade é formada por uma coordenadora, duas assistentes sociais, duas pedagogas, uma psicóloga e dois assistentes administrativos.


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