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Dia a dia

Como outros países enfrentaram o uso de drogas em espaços públicos

Cidades em vários continentes enfrentam o desafio de lidar com cenas abertas de consumo de drogas, cada uma adotando abordagens diferentes

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Pessoas em situação de rua na Cracolândia em São Paulo

Cracolândia em São Paulo. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O uso de drogas, especialmente em espaços públicos, é um tema que gera debates intensos em diversas partes do mundo. Cidades em vários continentes enfrentam o desafio de lidar com cenas abertas de consumo de drogas, cada uma adotando abordagens diferentes. De Viena a Nova York, as estratégias variam entre políticas de redução de danos, criação de zonas de tolerância e repressão policial, enquanto governos investem em saúde pública e serviços sociais para tentar conter o problema e diminuir os impactos tanto para os usuários quanto para a sociedade.

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Em 1985, cerca de 5,8 milhões de americanos relataram o uso regular de cocaína, e o crack, que é feito pela combinação de pasta de coca com bicarbonato de sódio, ganhou destaque, especialmente entre as camadas mais pobres da população. Nova York foi uma das cidades mais afetadas pela chamada “epidemia do crack” durante as décadas de 1980 e 1990, onde usuários e traficantes se agrupavam em áreas como o Alphabet City, no Lower East Side, e nas proximidades do Bryant Park, em Manhattan. Essa situação reflete a realidade vivida atualmente em São Paulo, na região da Cracolândia. “Ninguém está na Cracolândia por um marmitex”, afirmou o padre Júlio em resposta aos comentários da deputada Janaina Paschoal.

As chamadas “open drug scenes” também se tornaram um desafio em várias cidades europeias, incluindo Amsterdã (Holanda), Zurique (Suíça), Viena (Áustria), Lisboa (Portugal), Oslo (Noruega), Copenhague (Dinamarca) e Frankfurt (Alemanha). Paris ainda enfrenta um problema relacionado, com usuários de crack se concentrando no bairro de La Colline, o que levou à criação do termo “Colline du Crack” entre os moradores.

A BBC News Brasil identificou várias cidades ao redor do mundo que enfrentaram situações semelhantes de uso aberto de drogas e como conseguiram contornar esses desafios. Confira:

Amsterdã

Durante as décadas de 1970 e 1980, a venda e o uso de drogas na área de Zeedijk, no centro histórico de Amsterdã, tornaram-se um grande problema para a comunidade local. A maioria dos frequentadores era dependente de heroína, mas outras substâncias também circulavam amplamente. Antigos moradores relatam cenas de seringas espalhadas pelo chão, lixo acumulado e uma onda de crimes.

No final da década de 1980, a região era considerada perigosa. Contudo, a situação começou a mudar com a implementação de um conjunto de medidas que incluía acolhimento, tratamento e ação policial para desocupar ruas e edifícios abandonados.

Um estudo conduzido por pesquisadores do Centro de Pesquisa de Vícios da Noruega (UiO), da Universidade de Oslo e do King’s College de Londres em 2014 analisou as ações tomadas em Amsterdã e outras quatro cidades europeias: Zurique, Viena, Lisboa e Frankfurt.

No caso da capital holandesa, as estratégias foram desenvolvidas pela Câmara Municipal em colaboração com o Serviço Municipal de Saúde. O estudo indicou que uma das características dessa abordagem foi a tentativa de distinguir entre “drogas leves” (como a cannabis) e “drogas pesadas” (principalmente a heroína). O uso de drogas não era considerado crime, enquanto o tráfico era tratado como uma questão criminal. A dependência, por sua vez, era vista como uma doença que demandava intervenções de saúde.

Centros de acolhimento e novos abrigos foram estabelecidos, além da criação de locais apropriados para descarte de seringas e um programa para a distribuição de metadona, um medicamento que ajuda a controlar os sintomas de abstinência.

Essas iniciativas foram combinadas com projetos de revitalização da área e ações policiais regulares. A polícia dispersava grupos de usuários com base em leis administrativas que permitiam a aplicação de multas, evitando a concentração de pessoas. A não quitação das multas poderia resultar em ordens judiciais e prisões.

Segundo a pesquisa, a cultura holandesa de liberdade individual e tolerância a comportamentos que não causam incômodos públicos também contribuiu para o sucesso da estratégia em Amsterdã. Thomas Clausen, um dos autores do estudo, enfatizou que o esforço policial não teria sido eficaz sem a complementação de ações de assistência social e tratamento.

“Se a polícia remove um grupo de um local, eles provavelmente se deslocarão para outro lugar”, explicou o médico e professor da Universidade de Oslo. “Por isso, é crucial oferecer serviços de habitação, saúde e tratamento em áreas próximas às que precisam desses serviços.”

Frankfurt

Na segunda metade da década de 1980, a região ao redor da estação de trem Taunusanlage, no centro de Frankfurt, se tornou um ponto crítico para o uso de drogas.

Naquele período, mais de mil usuários se reuniam na área para consumir drogas injetáveis, enquanto a venda de substâncias ocorria quase livremente. A situação era tão grave que cerca de 150 dependentes morriam anualmente por overdose.

As políticas adotadas inicialmente pela administração local eram inconsistentes, oscilando entre abordagens liberais e restritivas. Em 1989, a criação de um escritório municipal focado no problema deu início a uma mudança.

As ações incluíram a instalação de um grande abrigo e um ambulatório na área, além de um café destinado aos usuários. O governo também expandiu o programa de terapia de substituição, que trocava a heroína por opioides, como a metadona, em doses controladas sob supervisão médica.

Clausen observa que, enquanto a metadona é eficaz para usuários de opioides, como a heroína, o tratamento do crack requer abordagens diferentes. Ele acrescenta que a solução envolve mais do que a aplicação da lei; é essencial oferecer serviços de apoio e espaços adequados.

Assim, Frankfurt implementou uma intensa intervenção policial, levando usuários do centro da cidade para abrigos em outras áreas. Os dependentes não residentes foram enviados de volta para suas cidades de origem, onde centros de apoio foram criados.

Em 1994, a cidade inaugurou sua primeira sala de consumo supervisionado, seguida por mais três em 1996. Esses locais fornecem seringas e material esterilizado, além de acompanhamento médico em casos de overdose. Esse formato permitiu que assistentes sociais interagissem com os dependentes, oferecendo opções de tratamento.

As salas não apenas ajudaram a remover usuários das ruas, mas também contribuíram para a redução de infecções associadas ao compartilhamento de seringas. O sistema de tratamento foi bem aceito pelo público e pelas autoridades, enfatizando a reintegração social dos usuários, mas também a necessidade de cumprimento de regras.

Embora a abordagem tenha sido eficaz na reabilitação da área de Taunusanlage, Frankfurt ainda enfrenta desafios relacionados ao uso de drogas. Durante a pandemia de covid-19, houve um aumento no número de usuários de crack. No entanto, especialistas observam que as novas áreas de consumo estão mais dispersas e que o cenário não é comparável ao que se via na década de 1980.

Zurique

A praça Platzspitz, em Zurique, chamou a atenção internacional na década de 1990 devido ao uso de drogas ao ar livre. Na época, a Suíça lidava com uma epidemia de heroína, e o governo respondia com repressão policial e tratamentos que focavam apenas na abstinência, estratégias que se mostraram ineficazes.

No final da década de 1980 e início da década de 1990, a Suíça apresentava a maior taxa de infecção por HIV na Europa Ocidental, em parte devido ao compartilhamento de seringas. A principal cena de consumo na capital se concentrava na Platzspitz, mas após várias operações policiais frustradas, usuários começaram a se reunir em uma estação ferroviária abandonada, a Letten.

Diante desse cenário, em 1991, o governo suíço formulou uma política nacional que integrava uma abordagem rigorosa contra a criminalidade com uma perspectiva de saúde pública voltada para os dependentes, conhecida como “estratégia dos quatro pilares”. Enquanto a aplicação da lei era um dos pilares, os outros três — prevenção, redução de danos e tratamento — buscavam uma abordagem mais humana em relação aos usuários.

Em Zurique, a polícia dispersou os usuários e fechou a Platzspitz em 1992, seguida pelo fechamento da Letten em 1994. Os dependentes foram convidados a buscar tratamento, e aqueles que não eram residentes foram forçados a voltar para suas cidades de origem.

Os pesquisadores que estudaram as cinco cidades europeias destacaram que a reabilitação urbana foi um aspecto essencial da estratégia de Zurique. O governo local passou a considerar inaceitável que qualquer pessoa vivesse nas ruas, resultando em uma significativa ampliação do sistema de abrigos.

Uma das partes mais controversas da política nacional suíça foi a introdução do tratamento assistido com heroína (HAT), que oferecia heroína pura sob prescrição médica em clínicas especializadas, garantindo que os dependentes parassem de adquirir drogas contaminadas no mercado negro. A primeira clínica desse tipo foi inaugurada em 1994, enfrentando resistência da oposição.

Contudo, entre 1991 e 2010, o número de overdoses fatais na Suíça caiu pela metade, e as infecções por HIV foram reduzidas em 65%. O número de novos usuários de heroína também caiu em 80%. Em 2008, a população suíça aprovou em referendo a incorporação permanente da estratégia dos quatro pilares na legislação federal.

Viena

Entre as décadas de 1980 e 1990, Viena, a capital da Áustria, enfrentou um significativo aumento no uso de drogas injetáveis, resultando na formação de várias áreas de consumo visível. A mais notória delas era a Karlplatz, onde mais de mil usuários se reuniam para consumir substâncias.

Em resposta, o governo local implementou uma política chamada “zusammenleben”, que pode ser traduzida como “vida em comunidade”. Essa estratégia buscava mitigar os problemas associados ao uso de drogas por meio da criação de zonas de tolerância. O consumo fora dessas áreas era enfrentado pelas autoridades policiais.

Embora houvesse várias pequenas áreas de consumo inicialmente, a abordagem do governo evoluiu ao longo do tempo, resultando na diminuição do uso público de drogas, com Karlplatz sendo a última a ser desativada. Essa área era monitorada pela polícia e contava com apoio de assistentes sociais, mas o consumo visível, em uma zona comercial movimentada, gerava controvérsias.

Em 2010, o governo decidiu encerrar a cena em Karlplatz, aproveitando a oportunidade criada pela reconstrução da rodoviária nas proximidades. A abordagem adotada em Viena envolveu a ampliação dos serviços sociais, incluindo novos pontos de descarte e troca de seringas, além de melhorias na capacidade de abrigos noturnos. O sistema de saúde pública passou a oferecer tratamentos com metadona e morfina de liberação lenta.

A reforma do parque na área também contribuiu para aumentar a visibilidade, enquanto a política buscou dispersar os usuários. Pesquisadores da Noruega e do Reino Unido destacam que foi necessário um esforço contínuo para evitar a reemergência do uso de drogas na região, que permanece sob vigilância intensa.

O investimento contínuo em serviços sociais e de saúde é essencial para garantir um tratamento adequado para os dependentes. Thomas Clausen, em entrevista à BBC News Brasil, ressaltou: “Concluímos que uma combinação de serviços e intervenções policiais foi crucial nas cidades analisadas. As comunidades e os governos precisaram dedicar tempo, recursos e apoio político para alcançar esses objetivos.”

Lisboa

No final dos anos 1990, Lisboa enfrentou um aumento alarmante no consumo de heroína, resultando na formação de três grandes áreas de uso aberto. Esses locais eram comumente referidos como ‘supermercados’, dada a facilidade de aquisição e consumo de drogas. O bairro de Casal Ventoso se destacou, abrigando cerca de 5.000 usuários diariamente em terrenos baldios e áreas isoladas, com a participação de famílias no tráfico.

Em 2001, o governo adotou uma resposta significativa ao problema ao descriminalizar o uso de drogas. Com essa mudança, qualquer usuário encontrado consumindo ou portando até 10 doses de substâncias para uso pessoal não enfrentava prisão ou multas.

O governo também estabeleceu Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT) em cada capital de distrito, onde usuários eram encaminhados pela polícia para atendimento psicológico e social. Casos de dependência eram tratados de maneira individualizada.

Para combater os ‘supermercados’, o governo central colaborou com as administrações municipais. Em Lisboa, os locais de consumo foram demolidos e a área foi reurbanizada com financiamento da União Europeia (UE). Simultaneamente, a oferta de abrigos e centros de reabilitação foi ampliada, e o uso de metadona foi introduzido nos tratamentos.

Com o tempo, as áreas de consumo aberto foram eliminadas, o número de pacientes em tratamento aumentou e a prevalência do uso de drogas diminuiu. No entanto, relatos recentes indicam um retorno do uso nas ruas e em locais abandonados, incluindo Casal Ventoso.

De acordo com Thomas Clausen, a análise das cinco cidades do estudo evidencia que a erradicação definitiva das áreas de uso aberto requer anos de esforço e investimentos. “Nosso estudo mostra que, muitas vezes, é necessário um longo prazo para formalmente eliminar as cenas de uso aberto. Assim, é essencial que políticos e autoridades policiais mantenham um compromisso duradouro.”

“Embora pequenos grupos de usuários possam persistir, eles tendem a ser menos problemáticos e em menor escala”, acrescenta.

Nova York

O caso de Nova York, nos Estados Unidos, é um dos mais comparáveis ao de São Paulo, especialmente no que diz respeito ao uso aberto de crack. A popularidade dessa droga começou a crescer nas áreas urbanas de Nova York na metade da década de 1980. Disponível em pequenas pedras e de baixo custo, o crack podia ser facilmente fumado, o que exigia pouca preparação.

Durante o auge da epidemia, o Bryant Park, localizado a duas quadras da Grand Central Station, se transformou em um mercado de drogas a céu aberto, com traficantes circulando entre usuários e moradores de rua. A região de Lower East Side também foi um ponto crítico, onde traficantes se estabeleciam em prédios abandonados, conhecidos como ‘crack houses’.

Esse aumento no uso de crack esteve diretamente ligado a uma escalada alarmante na criminalidade. Um estudo do Bureau of Justice Statistics (BJS) revelou que, em 1987, o crack foi associado a 32% dos homicídios registrados, além de representar 60% dos homicídios relacionados a drogas.

Em resposta a essa crise, a polícia dos Estados Unidos intensificou as ações contra o tráfico de drogas. Em 1988, a DEA (Drug Enforcement Administration) apreendeu 60.000 quilos de cocaína, em contraste com apenas 200 quilos confiscados em 1977. A ‘Guerra às Drogas’, iniciada durante o governo de Richard Nixon e ampliada na gestão de Ronald Reagan, gerou uma série de políticas punitivas, como a legislação de 1986 que estabelecia cinco anos de prisão para quem fosse flagrado com cinco gramas de crack, levando a um aumento exponencial nas condenações.

Nos anos seguintes, Rudolph Giuliani, ao assumir a prefeitura de Nova York, implementou uma repressão ainda mais rigorosa. A política de ‘Tolerância Zero’, que prevaleceu durante seu governo e o de seu sucessor Michael Bloomberg, priorizou a repressão a crimes menores como uma forma de restaurar a ordem e reduzir a criminalidade.

Essa abordagem é polêmica e suscitou debates sobre suas consequências, incluindo o aumento da população carcerária e casos de abusos policiais. No entanto, segundo Joseph Palamar, professor da NYU Langone Health, a firme atuação policial contra o tráfico foi eficaz no combate à epidemia de crack. “Embora muitos critiquem as políticas de Giuliani e Bloomberg por serem discriminatórias e por afetarem desproporcionalmente comunidades negras, elas tiveram um impacto positivo na diminuição do uso nas ruas”, afirma.

De acordo com Palamar, um dos principais fatores para o declínio da crise foi a mudança na percepção da população sobre os danos causados pelo uso de crack. “O estigma e a cobertura negativa acerca do crack influenciaram muito na redução do seu consumo. Portanto, podemos concluir que foi uma combinação de educação, aplicação da lei e esforços de prevenção.”

Embora o uso de drogas ainda represente um desafio em Nova York, as áreas de consumo aberto foram quase todas eliminadas. Contudo, as autoridades locais estão cada vez mais preocupadas com o aumento do uso de opioides. Em novembro de 2021, um relatório trágico revelou que mais de 100.000 pessoas morreram de overdose em um único ano, representando um aumento de 28,6% em relação ao ano anterior.


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