Coluna João Gualberto
O parlamento dos invisíveis
O grande historiador e sociólogo francês Pierre Rosanvallon – diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e conferencista no Collège de France – é autor de dezenas de livros da maior importância no campo das ciências sociais. É dele um pequeno livro que me parece particularmente importante nesse momento: O Parlamento dos Invisíveis, que foi publicado originalmente em francês em 2014, cuja primeira edição brasileira é de 2017.
O texto do sociólogo contém uma proposta muito interessante: fazer avançar a democracia, partindo do princípio de que é preciso dar voz ao cidadão comum. Argumenta que é necessário ter uma rede de informações digital que capte o sentimento de todos sobre a vida social, revitalizando o fazer democrático e construindo plataformas com o vigor de um sistema baseado em múltiplos relatos, que seriam como livros de menor tamanho.
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O princípio geral em que se baseia o autor é o de que as instituições responsáveis por dar voz ao povo estão em baixa. Ele inclui aí os sindicatos, a imprensa tradicional, os partidos políticos e todos os chamados espaços de socialização das atividades políticas. Esses espaços encolheram muito, segundo Rosavallon, que propõe então seu ingresso na arena digital para facilitar sua operação no mundo de hoje, até porque as plataformas digitais favorecem o diálogo e a troca.
Chamou minha atenção a valorização da encenação dos relatos da literatura através dos tempos na análise do grande pensador. Afinal, tenho enorme interesse na forma de expressão que a literatura faz de uma certa sociologia do cotidiano, como sabem os que vêm acompanhando os meus artigos. A literatura, para Rosanvallon, torna mais sensível o mundo, ao exprimir sem falsas aparências as indeterminações e a complexidade dos sentimentos morais. Ele registra que o romance foi por muito tempo o gênero que se mostrava o mais poroso às diferentes modalidades de conhecimento do homem e da sociedade.
Balzac, Hugo, Flaubert e Zola, para ele, exploraram o íntimo e o coletivo, superando o registro entre ficção e pensamento. O projeto de Rosanvallon chamado Contar a Vida pretende retomar esse viés de conhecimento pela escrita, pela investigação, pelo testemunho. A proposta pretende romper todas as hierarquias de gênero ou estilos em um site que agregue todas as contribuições de vastos setores sociais, hoje invisíveis porque impossibilitados de se expressarem.
O site raconterlavie.fr, que está no ar na França há alguns anos, pretende, com essa visão, ter uma dimensão comunitária, sendo produtor de laços sociais, tanto pela dinâmica de intercompreensão e de curiosidade pelo outro, que lhe serve de base, quanto pelas trocas e formas de ajuda que favorece. Alcança, assim, uma dupla dimensão: local e de laços, permitindo desenvolver as virtualidades democráticas da internet e ao mesmo tempo recuar seus usos estreitos e desconstrutivos. Desse modo, faz sua contribuição ao desenvolvimento das redes sociais de essência cidadã.
São pequenas obras que se concentram essencialmente na exploração de três conjuntos: 1. os relatos e trajetórias de vida, mesclando perfis e histórias singulares; 2. os lugares de produção ou expressão do social, que podem ser espaços exemplares de um novo modo de vida, lugares reveladores de uma crise social, de fluxo ou ainda lugares de trabalho, e 3. os romances de vida, aqueles que resultam de uma guinada, como o fim dos estudos, uma separação, um acidente ou a perda de um emprego.
A ideia é compreender a sociedade a partir de suas zonas de ambiguidade ou de inflexão e ainda as dinâmicas singulares que refazem a trajetória dos indivíduos. Tudo apreendido através de histórias singulares, mostrando essa maneira de lidar com a diversidade, a superação de elementos como o racismo, o machismo e todas as formas de preconceito que ameaçam uma sociedade igualitária e democrática.
Fiquei encantado com a ideia de discutir na nossa sociedade essa espécie de Parlamento dos Invisíveis, que, apoiando-se em um futuro site Contar a Vida, poderá incluir outras ferramentas, como as de imagem e som, além de criar um espaço para discutir as obras. A ideia é ter um espaço virtual de edição de todos os relatos de vida e as discussões e comentários produzidos pelo conjunto dos usuários.
Nós precisamos criar espaços abertos, democráticos e livres, onde as individualidades invisíveis possam se expressar e fazer avançar espaços de construção de novas identidades, como contraponto e superação dos permanentes ataques a um projeto de sociedade ancorado na igualdade.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.
