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Coluna João Gualberto

Para que serve a literatura? Ou Reinaldo Santos Neves

Reinaldo Santos Neves retrata, com maestria, as contradições e evoluções da sociedade capixaba em narrativas que desafiam o tempo e os costumes

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A obra de Reinaldo Santos Neves reflete as transformações sociais e morais do Espírito Santo. Foto: Reprodução da internet

A obra de Reinaldo Santos Neves reflete as transformações sociais e morais do Espírito Santo. Foto: Reprodução da internet

É óbvio que essa questão pode comportar várias respostas, mas, por certo, também é difícil encontrar uma resposta absolutamente funcional: como linguagem artística a literatura tem na vida humana um papel que cada um dimensiona no seu universo  subjetivo. Para mim a literatura, por exemplo, é vida: uma forma de eu me abstrair do mundo pequeno a que estamos invariavelmente sujeitos e mergulhar em sentimentos e emoções.

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Tenho usado a literatura, entretanto,  de uma outra forma, para estudar a vida social, para compreender como se configura o cotidiano de uma sociedade em determinado momento. Em A Invenção do Coronel, livro originado da minha tese de doutorado em sociologia política, retirei de obras literárias muitos elementos para explicar o coronel, ícone portador de violência e progresso, na sociedade brasileira do início do século XX. Podemos observar esses elementos tanto em Mundinho Falcão, personagem de Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, quanto no Dr. Rodrigo Cambará, de Érico Verissimo, em O Tempo e o Vento. Mais recentemente tenho estudado autores capixabas para compreender o nosso cotidiano e as raízes de nossa construção imaginária.

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Foi assim que, nos últimos meses, li mais atentamente Renato Pacheco, Getúlio Neves, Pedro Nunes, Luiz Guilherme Santos Neves, Adilson Vilaça e Ezequiel Ronchi Neto, todos grandes autores capixabas. Fiz apontamentos sobre as leituras – publiquei inclusive alguns neste espaço e no meu blog – para escrever um livro sobre as raízes do imaginário capixaba a partir da nossa literatura. Até avancei nesses artigos sobre a fofoca e a violência como duas marcas históricas de nossa sociedade.

Agora comecei a ler, com a mesma finalidade, a extraordinária produção literária de Reinaldo Santos Neves. O primeiro passo foi analisar a trilogia Graciano, que é como o próprio autor denomina os três livros: Poema Graciano, As Mãos no Fogo: o romance Graciano e a Ceia Dominicana: Romance Neolatino. São obras que tratam das aventuras de Graciano Daemon, o personagem principal de todos eles, no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. O Romance Graciano se passa na ilha de Vitória, já Ceia Dominicana é uma aventura rápida, rica e cheia de emoções, que se passa na vila de Manguinhos, em apenas três dias. É uma continuação do Romance Graciano e um desdobramento de um casamento fracassado. A Ceia se passa quando deveria se passar a lua de mel do personagem.

Eles são uma extraordinária radiografia da moral provinciana de nossas elites, já que o circuito social dos romances é todo o das classes mais próximas ao poder regional. A família do protagonista da série é descendente de um antigo governador de nosso estado. Um irmão seu disputa o cargo de reitor da Ufes no Romance Graciano, enquanto ele próprio foi nomeado professor da mesma universidade no departamento de letras e só não iniciou as aulas porque recebeu grossa herança e foi viver sua vida.

Graciano é obcecado por “cabaços”, como ele próprio relata inúmeras vezes, e tem até  mesmo um episódio pouco edificante com uma sobrinha adolescente, história que depois vem a público de forma vergonhosa para ele. Abandonara a noiva na noite de núpcias porque não era mais virgem, porém ele mesmo tinha rompido com a virgindade dessa jovem e desamparada sobrinha. Enfim, uma confusão de procedimentos dentro de um código moral machista tóxico. Ler Reinaldo nos deixa bem próximos desses tempos de grandes mudanças em nosso país. Os militares se despediam do poder, a democracia impunha o fim de tradições ultrapassadas e o velho machão corria riscos.

Com relação a outras obras do autor, Suely ainda o traz preso a critérios rigorosos em seus personagens, sendo ele próprio o protagonista do livro. O mesmo se dá em Muito Soneto Para Nada. São obras que mostram como funciona o mundo intelectual do Espírito Santo no mesmo período, com as mesmas formas de expressão do amor masculino. Entretanto, em Kitty aos 22: divertimento Reinaldo já mostra uma família de classe média alta de Vitória, moradora da Mata da Praia, habitando outra realidade. O pai é separado da família mas lhe garante um alto padrão de vida, enquanto vive seu novo casamento com um homem em Buenos Aires.

Kitty é totalmente liberada e vive sua sexualidade em completa liberdade, mostrando o salto moral de procedimentos que a ilha viveu em pouco mais de 20 anos, ingressando sem dó no mundo das drogas, do sexo e do rock, que é o estilo musical preferido de Kitty. Um livro extraordinário, que mostra como a literatura diverte, informa e nos faz refletir sobre a essência de tudo. O Espírito Santo precisa conhecer melhor os seus grandes escritores, entre eles Reinaldo Santo Neves, um autor maior e que nos ajuda a entender o que somos como sociedade.

João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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