Coluna Vitor Vogas
Câmara de Vitória “devolve” R$ 52 milhões… mas há controvérsias
Como eu posso “devolver” algo que jamais recebi e que nunca vou de fato receber é algo que desafia a lógica. Entenda o raciocínio que embasa a pretensa “devolução” com direito a um checão simbólico… e os furos (lógicos e terminológicos) nessa argumentação

Entrega do cheque simbólico de Leandro Piquet para Lorenzo Pazolini (02/10/2023). Crédito: CMV
Atos simbólicos, com forte jogo de cena, fazem parte da atividade política. O realizado na Câmara de Vitória na última segunda-feira (2) chamou a atenção pelos elementos cênicos e por partir de uma premissa, no mínimo, discutível. Ao lado do prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos), do secretário municipal de Governo, Aridelmo Teixeira (Novo), e de outros vereadores, o presidente da Casa, Leandro Piquet (Republicanos), anunciou que o Legislativo do município está devolvendo ao Executivo nada menos que R$ 52 milhões, destinados a investimentos na cidade.
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O ato teve direito à entrega de um checão simbólico, no valor informado, à semelhança daqueles entregues antigamente pelo apresentador Fausto Silva, no palco do “Domingão”, aos ganhadores das Olimpíadas do Faustão.
Assim como o ato em si, o número desperta a atenção: cinquenta e dois milhões de reais “devolvidos” pela Câmara à Prefeitura, de uma hora para outra? Que dinheiro é esse e como o Legislativo chegou a esse valor?
O que não é
Quando se ouve falar em “devolução”, a primeira coisa que se pensa é que se trata de uma verba efetivamente repassada pelo Executivo ao Legislativo no atual orçamento municipal (o duodécimo) e que a Câmara preferiu não gastar.
Num passado recente, muitos presidentes da Câmara de Vitória fizeram isso, a fim de transmitir à sociedade a imagem de austeridade, de zelo com os recursos públicos.
Vamos supor que, em determinado ano, o Executivo tivesse reservado R$ 30 milhões para o Legislativo. Mas, ao longo daquele ano, a Câmara só gastou R$ 29 milhões. Esse R$ 1 milhão economizado era, então, devolvido à Prefeitura. Dinheiro efetivamente economizado naquele mesmo exercício financeiro.
Mas não é esse o caso do “checão” de Piquet para Pazolini.
Nesse caso, a Câmara não está “devolvendo” um dinheiro economizado pela própria Casa durante o atual exercício, no orçamento municipal que está a ser executado neste ano. O que se está pretensamente “devolvendo” é um dinheiro futuro, hipotético, que a Casa deixará de receber no orçamento municipal do ano que vem, cujo projeto acaba de ser enviado por Pazolini à Câmara.
Como alguém pode de fato “devolver” um dinheiro que jamais recebeu e que não chegará a receber soa, a princípio, como um grande paradoxo.
Mais correto talvez fosse dizer que a Câmara está abrindo mão dessa verba no ano que vem, que está aceitando deixar de receber parte da verba a que “teria direito” no orçamento elaborado agora para 2024… Mas mesmo aqui caberiam discussões no que tange a esse pretenso “direito”.
Para entendermos o inusitado raciocínio de Piquet e da Câmara de Vitória, vamos dar dois passos para trás. É preciso, antes, explicar o que diz a legislação, bem como a conta que eles fizeram para sustentar essa alegada “devolução de R$ 52 milhões”.
O que é
Quem elabora e executa a peça orçamentária anual é o Poder Executivo. O total repassado à Câmara no ano, ou seja, a parte do orçamento municipal que cabe ao Legislativo precisa obedecer a um teto. Esse limite é definido pela Constituição Federal em razão de dois fatores: o tamanho da população e a receita realizada pelo município no ano anterior.
De acordo com o Artigo 29-A, III, da Carta Magna, a despesa total da Câmara de Vitória “não poderá ultrapassar” 5% da soma da receita tributária e das transferências constitucionais efetivamente realizadas no exercício anterior. Esse é o limite máximo.
Pois bem, segundo estimativas internas da Prefeitura de Vitória, a receita efetivamente realizada pelo município em 2023 deve ficar muito próxima a R$ 2 bilhões. Esse é o ponto de partida para entendermos como a Câmara chegou ao checão de R$ 52 milhões.
Cinco por cento de R$ 2 bilhões é igual a R$ 100 milhões. Esse seria, portanto, o valor máximo que a Prefeitura poderia destinar para a Câmara no orçamento municipal de 2024 – e que, conforme sustenta a Câmara, ela teria o direito de receber.
Mas o valor realmente destinado à Câmara em 2024 ficará bem longe disso.
No Projeto de Lei Orçamentária Anual que a Prefeitura acaba de protocolar, a parte destinada ao Poder Legislativo é de R$ 47.353.000,00. Isso não chega nem à metade dos R$ 99,9 milhões que ela poderia receber, à luz da Constituição. Precisamente, em vez do teto de 5%, a fatia do orçamento reservada para a Câmara em 2024 corresponde a 2,37% da receita corrente líquida que a Prefeitura estima realizar no atual exercício.
Cem milhões de reais menos R$ 47,3 milhões dá R$ 52 milhões e uns quebrados – arredondando, R$ 52 milhões, o valor inscrito no checão. E é exatamente esse o valor que a Câmara alega estar “devolvendo” à Prefeitura.
Como resume o presidente Piquet, essa é “a diferença do repasse constitucional (5% da receita corrente líquido do município) menos as despesas previstas no orçamento [de 2024] para o funcionamento do poder legislativo (2,37% da receita corrente líquida)”.
99,9 milhões (5%) – 47,3 milhões (2,37%) = 52,6 milhões (2,63%)
Problema lógico e terminológico
Em matéria na página oficial da Câmara, a assessoria de comunicação da Casa publicou:
“Por lei, a Câmara de Vitória tem direito a 5% do orçamento anual do Poder Executivo. Mas o Poder Legislativo, numa gestão administrativa econômica e eficiente, economizou dos cofres públicos o valor entregue. ‘Este ano estamos devolvendo R$ 52 milhões’, ressaltou Piquet, durante a entrega do cheque simbólico. ‘E esta é a melhor devolução programada da nossa história’, afirmou o presidente da CMV’.” (grifos nossos)
Repito: cabe muita discussão. É muito controverso falar-se em “devolução” e, mais ainda, que o Poder Legislativo “economizou o valor entregue” (assim mesmo, no passado).
O texto constitucional é cristalino: o Executivo na verdade não é obrigado a repassar os 5% para a Câmara. Trata-se de um teto legal, que não pode ser superado, mas não de uma imposição, como claramente expresso na redação do artigo: a despesa total da Câmara “não poderá ultrapassar” 5% da receita realizada pelo município no ano anterior… mas não precisa chegar lá.
Além disso, insisto, por uma questão de lógica, não posso dizer que devolvi algo que nunca recebi. Mais que uma questão de ordem legal, estamos diante de um problema de ordem lógica. Ou, no mínimo, terminológica.
A resposta de Piquet ao questionamento
Na coletiva de imprensa concedida por ele nessa quarta-feira (4) para explicar sua decisão de levar a Câmara para uma nova sede a ser alugada, Leandro Piquet tornou a defender que essa é “a primeira vez na história que a Câmara de Vitória faz uma ‘devolução programada’ como essa à Prefeitura”.
Apresentei ao próprio presidente as ressalvas e discordâncias conceituais acima expostas. Perguntei-lhe se não seria mais correto afirmar que a Câmara está “abrindo mão” do valor máximo que poderia ser destinado ao Poder no próximo orçamento municipal, ou que está “aceitando deixar de receber”, em 2024, um repasse equivalente ao teto.
Ele concedeu: “A nomenclatura não invalida o mérito da medida”.
Piquet fez questão de enfatizar: a “devolução de R$ 52 milhões” – isto é, o não recebimento no teto – está condicionada a investimentos. No acordo firmado com Pazolini, esse montante que não irá para a Câmara terá necessariamente de ser investido pela Prefeitura em melhorias na cidade e políticas públicas em 2024.
Piquet e Pazolini fechadíssimos
À parte as reflexões e divergências sobre números e narrativas, algumas conclusões ficam patentes:
Quando nada, o ato simbólico do “checão do Faustão” prova que a relação política entre os chefes dos dois Poderes, delegados e correligionários no Republicanos, está mais azeitada que nunca. Andou estremecida meses atrás, mas agora vai de vento em popa.
Câmara enxuta, em termos proporcionais
Um repasse total de quase R$ 50 milhões pode ser mais que suficiente para bancar as despesas da Câmara de Vitória em 2024. É preciso reconhecer, porém: proporcionalmente ao tamanho da receita municipal, o Legislativo da Capital pode ser considerado um Poder até econômico, que opera com uma verba bem abaixo do que poderia obter do Executivo, do ponto de vista legal. Friso: proporcionalmente.
“O jeito Republicano”
Pazolini e Piquet exaltaram a “devolução” como exemplo do “jeito Republicano de governar”. É preciso ponderar, contudo: os últimos presidentes da Câmara de Vitória, antecessores de Piquet no cargo, também trabalharam com orçamentos enxutos, bem distantes dos reivindicados 5%, inclusive Davi Esmael, já no primeiro biênio da administração de Pazolini (2021-2022).
Nenhum desses ex-presidentes era filiado ao Republicanos.
