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Coluna Vitor Vogas

Análise: a reação exagerada de Euclério contra a Boa Vista

Após briga de foice e polêmica sem sentido com a escola de samba de Cariacica, a arte e a alegria, literalmente, venceram

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Em 2017, como deputado estadual, Euclério Sampaio apresentou um projeto de lei que, literalmente, proibia a exibição de corpos nus em obras de arte e exposições artísticas no Espírito Santo. Flagrantemente inconstitucional, por significar censura prévia, o projeto foi aprovado no plenário da Assembleia Legislativa, mas recebeu o veto do então governador, Paulo Hartung, posteriormente mantido pelos deputados.

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Aquela iniciativa de Euclério, que sempre foi um parlamentar de direita, seguiu uma onda conservadora que então ganhava muita força no mar político brasileiro, com projetos dessa natureza espalhando-se pelas casas legislativas do país. Partia da presunção de que “arte é só aquilo que eu considero arte”. Por óbvio, não cabe a um legislador definir o que é arte, a partir do próprio filtro ideológico, tampouco o que pode ou não conter uma manifestação artística, seja ela um livro, um filme, uma pintura, uma escultura, ou o maior “quadro em movimento” da cultura popular brasileira: o desfile de uma escola de samba.

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Passados oito anos – mais de quatro à frente da Prefeitura de Cariacica –, Euclério parece ter sofrido uma “recaída”.

A reação intempestiva do prefeito em relação ao desfile da Independente de Boa Vista, escola de samba mais popular da cidade governada por ele, precisa ser colocada em análise. Foi errada e desproporcional. Falemos da maneira mais direta: o prefeito mandou mal no episódio.

“Ala”, em espanhol e italiano, significa “asa”. Ao manifestar veemente “repúdio” ao desfile da Boa Vista em homenagem ao fotógrafo Sebastião Salgado, por conta de uma ala alusiva ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o prefeito deu asas ao exagero. E desnudou (com trocadilho) uma faceta um tanto autoritária. Mais ainda ao ameaçar cortar o repasse de verbas públicas para a escola e “responsabilizá-la de forma cabível” – sugerindo a adoção de medidas jurídicas em represália à agremiação do seu próprio município. A ameaça depois foi revista, diante da repercussão negativa, o que só reforça o quanto era descabida. E tudo por quê? Porque a ala em referência aos sem-terra o surpreendeu, lhe desagradou e contrariou suas convicções pessoais.

O timing da nota pesada publicada por Euclério também foi inoportuno. Em plena manhã de quarta-feira (26), dia da apuração das notas das escolas que passaram pelo Sambão do Povo no último fim de semana. Soou como uma declaração de guerra, atingindo em cheio a escola cariaciquense (e seus membros) horas antes do momento mais importante do ano para a comunidade local. Por ironia, Dionísio, deus da folia, e Apolo, deus das artes, conspiraram: a Boa Vista sagrou-se campeã do Carnaval capixaba em 2025. Respondeu à nota de Euclério com dezenas de notas dez.

Mas a reação do prefeito é problemática por três outras grandes razões.

1. Desconhecimento

Surpreende que alguém se surpreenda com o fato de um desfile em homenagem a Sebastião Salgado trazer uma ala em referência ao MST. Na verdade, alguém poderia opinar que o espaço conferido ao movimento no desfile foi até, proporcionalmente, pequeno, tamanha a sua importância no conjunto da obra do fotógrafo homenageado.

Ensaios e exposições de fotos retratando o cotidiano de trabalhadores sem-terra e suas famílias – reunidas, por exemplo, no livro “Terra” (1997) – constituem parte fundamental da obra do fotógrafo mineiro mundialmente aclamado. Fotos clássicas como a de uma menina sem-terra no Paraná e a de trabalhadores com foices erguidas ajudaram a fazer a fama internacional de Salgado.

Propor um enredo em homenagem ao grande fotógrafo e ignorar o MST seria como honrar Pablo Picasso sem falar de “Guernica” e da Guerra Civil Espanhola; laurear Oscar Niemeyer sem mencionar Brasília; render honras a Tom Jobim sem fazer referência à Bossa Nova e apresentar, no mínimo, uma ala em alusão à “Garota de Ipanema”.

Seria possível, daqui a muitos anos, propor um enredo em celebração de Euclério Sampaio, sem destacar sua parceria vital com o governador Renato Casagrande?

Seria impossível. E a escola talvez até perdesse pontos no quesito enredo, pois qualquer jurado imediatamente estranharia a injustificável lacuna.

2. Paixão ideológica

Euclério sempre foi um político conservador de direita, e tem toda a legitimidade para seguir a ideologia que quiser. Como prefeito, porém, não pode tomar decisões administrativas e gerir a coisa pública com base em preconceitos ideológicos.

Para lhe fazer justiça, é preciso salientar que Euclério não vem (ou não vinha) se pautando por uma agenda ideológica enquanto governante. Como candidato a prefeito em 2020 e 2024, ele não investiu nesse tipo de discurso, não nacionalizou as eleições locais nem se deixou levar pela polarização política entre direita e esquerda. Assim também como chefe do Executivo municipal.

Euclério sempre diz que governa para todos, sem distinção. Sempre faz questão de frisar que conversa com todo mundo. De fato, sua capacidade de diálogo com as mais diversas forças políticas e partidárias tem sido reconhecida e celebrada (não raro, com grata surpresa) por aliados e colaboradores do prefeito na gestão em Cariacica.

Nesse episódio, ele fez exatamente o contrário disso.

O equívoco aqui é evidente: um representante do Poder Executivo não pode pautar os investimentos e a distribuição de recursos públicos municipais (quem “merece” ou “não merece” recebê-los) por critérios ideológicos pessoais, e anunciar a suspensão de um repasse passionalmente, como forma de represália, porque assim decidiu sozinho, sem ouvir o Conselho Municipal de Cultura, a Secretaria de Cultura, a própria comunidade etc. Não é postura democrática nem republicana.

3. Reforço de um estigma

Palavras sempre têm muita força. Voam como a Águia Furiosa da Boa Vista. Mais ainda quando partem de uma autoridade pública, admirada por muitos e tomada como referência. E mais ainda num cenário de extremismos e animosidade política entre as pessoas, como o que temos vivido no país na última década. Um prefeito como Euclério deve ter cuidado redobrado ao escolher as palavras, dosá-las bem, ponderá-las para não carregar nas tintas.

Chamar o MST de “movimento criminoso” é temerário. Reforça um sentimento de ódio, uma generalização e uma estigmatização das pessoas, em geral muito pobres, que dele fazem parte. Qualquer um que já tenha pisado num assentamento de famílias de sem-terra sabe bem que ali existem pequenos agricultores de bem, em sua imensa maioria, além de experiências muito positivas ligadas, por exemplo, à educação popular no campo e à agricultura familiar, com o cultivo de alimentos orgânicos.

A própria cidade de Cariacica, embora na Região Metropolitana, tem vários bairros que surgiram da ocupação de pessoas sem-teto que se organizaram no movimento popular por moradia. O bairro de Padre Gabriel, para citar um exemplo, surgiu assim. A semelhança entre os movimentos é grande. O movimento popular por moradia é, no cerne da reivindicação, o parente do MST que mora na cidade grande.

O prefeito, enfim, viu a escola da sua cidade, “repudiada” por ele, sambar na cara do preconceito e faturar o título do Carnaval de Vitória em 2025, após uma briga de foice sem sentido e sem necessidade.

Não foi a Boa Vista que perdeu décimos preciosos no episódio.