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Coluna João Gualberto

Coluna João Gualberto | 23 de maio

Em razão da complexidade de todo esse longo processo de encontro de mundos diferentes, não podemos comemorar o 23 de maio de forma unilateral

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Casa da Memória de Vila Velha. Foto: Reprodução

Casa da Memória de Vila Velha. Foto: Reprodução

Como muito bem sabem os capixabas, no dia 23 de maio comemoramos a data que ficou conhecida como a Colonização do Solo Espírito-Santense. Ela diz respeito ao dia em que Vasco Fernandes Coutinho e um grupo de 60 homens desembarcaram na Capitania. Estavam a bordo da Caravela Glória. O Capitão-Mor havia recebido do Rei de Portugal, Dom João III, uma Carta de Doação e outros documentos dando plenos poderes para iniciar o processo da construção política e econômica do seu lote como uma parte da colônia vinculada ao Império Lusitano. Iniciava-se, assim, a nossa colonização como empreendimento fidalgo.

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O nosso donatário não era membro das cortes e muito menos um homem de grande cabedal. Era um fidalgo de província, um digno representante da pequena nobreza do reino. Tinha se destacado pelos seus serviços ao rei na expansão lusitana para as Índias. Participou de lutas importantes, em especial em Goa, contribuindo com bravura na consolidação dos planos estratégicos das elites portuguesas daquela época.

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O empreendimento fidalgo comandado na nossa Capitania por Vasco Fernandes Coutinho tinha um caráter muito claro de consolidação da fé católica no Novo Mundo. O cristianismo estava na origem de tudo, tanto que o Tratado de Tordesilhas que havia distribuído o Novo Mundo, ou seja, o continente americano, entre espanhóis e portugueses, era obra do Vaticano. Obra jamais aceita por ingleses, franceses e holandeses que passaram os séculos seguintes a tentar participar, mesmo pela força das armas e das invasões, das riquezas extraídas da América.

O catolicismo fez parte do empreendimento fidalgo que depois foi aprofundado pelo caráter mais disciplinado e sistemático do jesuítico. Mas, fiquemos no que aconteceu no nosso território depois que os agentes da colonização aqui chegaram no dia 23 de maio de 1535. Eles eram poucos e tinham um espaço territorial enorme para conquistar. Queriam descobrir ouro e pedras preciosas. No nosso caso, havia a ideia de encontrar uma montanha de esmeraldas no Vale do Rio Doce. Muitas foram as entradas e expedições que avançaram pelo interior em busca dessas riquezas.

Foram erguidos muitos templos para celebrar e expandir entre os povos originários a fé dos colonizadores. Ainda hoje temos como legado daqueles tempos a Igreja do Rosário e o Convento da Penha, em Vila Velha, e a Capela de Santa Luzia, na cidade alta. Edificações como o Forte de Piratininga, em Vila Velha ainda estão lá para mostrar a preocupação dos primeiros colonizadores com a segurança da Capitania. O passar dos séculos mostrou que, com base nos conceitos de ímpios e gentios, a fé católica se impôs, não sem violência.

No século XVI, o que possibilitou a riqueza foi o cultivo da cana de açúcar e todas as atividades existentes na sua cadeia produtiva, com a utilização do trabalho indígena. Forçado, escravizado ou cristianizado eles foram sendo incorporados ao processo social comandado pelos agentes da colonização. Os portugueses raramente traziam suas esposas, e assim, as indígenas foram sendo, por muitos processos, nem todos aceitáveis, as mães desse Espírito Santo que nascia. Somos muito mais indígenas em hábitos culturais, culinários, linguísticos, do que a nossa história tradicional mostra. Na sequência histórica temos a incorporação dos africanos escravizados na Capitania como força de trabalho também forçado. Esse é o início da construção do nosso estado, da nossa cultura e da nossa identidade.

Em razão da complexidade de todo esse longo processo de encontro de mundos diferentes, sob a direção com mão forte dos europeus, não podemos comemorar o 23 de maio de forma unilateral, festejando a chegada dos colonizadores portadores do progresso e das vantagens da civilização. Até porque, os agentes da colonização também foram, entre muitas outras coisas, os responsáveis pela introdução do trabalho escravizado. Havia os negros da terra, os indígenas, e os negros da África. Eram todos submetidos a uma tirania que lhes roubou a autonomia e a liberdade.

Por outro lado, há um bom debate feito por professores da rede pública em Vila Velha, sobre a vitória que os indígenas obtiveram em muitas batalhas, sobre o seu protagonismo, afinal vencerem três grandes generais portugueses: Jorge de Menezes, Simão de Castelo Branco e Fernão de Sá. Esse último morreu na famosa batalha do Cricaré. Foi um encontro violento de culturas.

Temos, eu creio, que ter consciência do que estamos de fato comemorando quando falamos em colonização. Sem nos aprofundarmos em todas as faces desse processo histórico estamos sujeitos a dar, à chegada dos colonizadores, um papel mais amplo do que o de iniciar algo que fugiria ao controle deles próprios. Eles não comandaram plenamente o processo que instituíram. Criaram, aqui, um encontro de mundos diferentes, ainda que muito desigual, que depois partiu em busca da sua própria trajetória. Devemos refletir mais nas múltiplas dimensões do mundo que o lusitano criou no Brasil. Usar essa data para pensarmos no que significa, hoje, ser capixaba, ser brasileiro ou brasileira.


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João Gualberto

João Gualberto é professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo e Pós-Doutor em Gestão e Cultura (UFBA). Também foi Secretário de Cultura do Espírito Santo de 2014 a 2018. João Gualberto nasceu em Cachoeiro do Itapemirim e mora em Vitória, no Espírito Santo. Como pesquisador e professor, o trabalho diário de João é a análise do “Caso Brasileiro”. Principalmente do ponto de vista da cultura, da antropologia e da política.

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