fbpx

Coluna Vitor Vogas

Opinião: por que sou contra o projeto Escola sem Partido?

É preciso urgentemente discutir o que a direita conservadora bolsonarista realmente entende por “defesa da liberdade”. Projeto pode ser aprovado nesta semana pela Câmara de Vitória, mas, além do acintoso vício de iniciativa, contém três equívocos gravíssimos no teor do que propõe

Publicado

em

Foto: Arquivo/Tânia Rêgo/Agência Brasil

Hoje quero explicar aqui por que sou contra, completamente contra, o projeto Escola sem Partido, que pode ser votado e aprovado ainda nesta semana na Câmara de Vitória, por iniciativa dos vereadores Davi Esmael (PSD) e Leonardo Monjardim (Patriota). Na versão mais curta da resposta, digo que o projeto, em essência, consiste em ataque frontal à liberdade de docentes e discentes. Na versão analítica, quero pedir licença ao leitor(a) para fazer uma pequena digressão.

> Quer receber as principais notícias do ES360 no WhatsApp? Clique aqui e entre na nossa comunidade!

Representantes da direita conservadora bolsonarista falam em “liberdade” de maneira incansável e incessante. A palavra mágica foi acoplada pelo próprio Bolsonaro (PL) em seu slogan político e eleitoral. Ele começou o seu governo em 2019 falando em “Deus, pátria e família”. Terminou-o em 2022 falando em “Deus, pátria, família e liberdade”. Uma quarta perna, portanto, foi acrescida ao tripé mercadológico. E “pegou” – ah, como pegou!

Receba as notícias da coluna no grupo de Whatsapp do Vítor Vogas.

O conceito de “liberdade” é muito abrangente, subjetivo e elástico. Nos últimos anos, tem sido surrado, maltratado e adaptado no Brasil segundo os interesses de cada grupo político. Fica ao gosto do freguês: cada um o entende e usa como quer. No caso do bolsonarismo, a concepção e a utilização do conceito de “liberdade” são no mínimo peculiares.

Exemplo crasso: durante meses, a contar de 30 de outubro, autodenominados “patriotas” acamparam e fizeram vigília diante dos portões de quartéis das Forças Armadas, clamando por um golpe militar que impedisse a posse do presidente democraticamente eleito nas urnas na referida data, só porque não era o preferido deles. É isso. Não há outra forma de dizê-lo.

O resultado, se concretizado, teria significado a ruptura com a legalidade, a normalidade e a institucionalidade democrática no país. Teria sido, materialmente, um ataque à Constituição Cidadã vigente desde 1988, ao Estado Democrático de Direito e, em essência, à própria democracia, regime de governo que tem por base a defesa e a garantia das liberdades individuais.

Em outras palavras, invocando à exaustão a “liberdade”, esses pretensos “patriotas” estavam na verdade a profaná-la, pregando e conspirando contra o único sistema de governo que de fato a assegura; defendendo sua substituição por um regime em que ela, a liberdade, seria justamente a maior vítima. É só olhar os inúmeros exemplos atuais pelo mundo e colhidos na história nacional.

Até hoje esses ditos “patriotas” estão convencidos, e seguirão convencidos, de que estavam agindo em defesa da “liberdade” (qual?!?).

Da mesma forma, os autoproclamados “patriotas” que depredaram as sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro estavam e estão delirantemente convencidos de que assim agiram em defesa das “nossas liberdades”, palavra muito ouvida nos autoincriminadores vídeos dos golpistas terroristas.

> Serra 40 graus: eleição 2024 já começou na cidade de Vidigal

O que isso tem a ver com o projeto Escola sem Partido? Respondo: nada, porém tudo.

No caso dos defensores locais do Escola sem Partido, estamos diante de outro caso de “incongruência conceitual”: há um enorme descompasso entre o que se diz propor e os efeitos reais do que se está propondo; interpretação muito própria do conceito de liberdade.

Seus autores tanto falam em “liberdade”. Mas defendem um projeto que, na prática, amordaça professores.

Por exemplo: por iniciativa de Monjardim e com a participação de Davi Esmael e Luiz Emanuel (sem partido), acaba de ser criada na Câmara de Vitória a Frente Parlamentar de Direita Conservadora, que tem oficialmente, como seu primeiro objetivo, “fortalecer a luta em torno das liberdades democráticas”. Fantástico!

Mas o mesmo vereador que diz isso propõe a reedição do projeto Escola sem Partido… evidenciando que a “luta” em torno dessa “liberdades” não abarca a liberdade de cátedra, a liberdade de expressão dos professores nem a liberdade dos próprios alunos em ter acesso a um ensino amplo, plural, democrático, que lhes permita expandir livremente suas possibilidades de exploração intelectual.

Já escrevi muito sobre o Escola sem Partido (sinceramente, estou cansado do tema), mas o movimento e seus muitos subprodutos são como aquele vilão de filme de terror que nunca “acaba de morrer”: a cada dois anos, volta para pregar um novo susto.

Além de todas as questões legais e técnicas – a flagrante inconstitucionalidade, por legislar sobre matéria privativa da União –, vejo três grandes problemas no mérito do que, mais uma vez, se propõe:

1. O projeto Escola sem Partido promove verdadeira caça às bruxas, tratando professores como inimigos dos pais (e do país, com acento), como ameaças aos alunos e problemas da educação, quando na verdade eles são a solução. Quero pôr em letras garrafais, para quem ainda não entendeu: professores são A ÚNICA SOLUÇÃO POSSÍVEL.

Não há caminho para melhorarmos o nível da nossa educação, sobretudo a ofertada pelo Estado, que passe ao largo desses profissionais. E para isso, além de sua qualificação, o primeiro passo é respeitá-los e valorizá-los… Justamente o contrário de acossá-los, intimidá-los, cerceá-los, apontar-lhes dedos e inibir sua prática pedagógica.

Justamente o contrário de acusá-los e tratá-los como vilões do aprendizado. Para quem ainda não aprendeu: eles são o aprendizado, ou (Freire me corrigiria) parte fundamental no processo de aprendizagem.

> Antigo Partido Comunista Brasileiro: afinal, o que virou o Cidadania no ES?

2. O projeto Escola sem Partido desvia completamente o foco dos verdadeiros problemas da educação do país. Pode acreditar: quem quer que estude de verdade a realidade da educação brasileira – pessoas que dedicam a vida a entender os dramas reais da comunidade escolar (aliás, essas pessoas foram ouvidas?) – sabe bem que uma “doutrinação ideológica” supostamente praticada por educadores é, a bem da verdade, a última verdadeira questão educacional do país.

Está longe da lista de reais problemas que efetivamente precisamos atacar, para ontem, se verdadeiramente queremos uma educação melhor para os nossos filhos:

1) grade curricular;

2) educação em tempo integral;

3) combate à evasão escolar;

4) formação, treinamento, aprimoramento permanente e valorização salarial dos professores;

5) educação especial;

6) alfabetização na idade certa;

7) por incrível que pareça, num país tão desigual onde a fome é um fantasma renitente (ainda que negado mais de uma vez pelo nosso ex-presidente): oferta e qualidade da merenda escolar.

3. Analisando só a capa do projeto Escola sem Partido, parece muito bom, legal e bem-intencionado. Afinal, quem é que deseja uma “Escola com Partido”?

Mas, quando passamos a percorrer as linhas do projeto, logo percebemos que o que realmente se persegue não é bem uma “escola sem partido”, mas uma escola orientada por um partido, um partido muito específico, que poderia muito bem se chamar Partido da Educação Conservadora de Direita e Neopentecostal, para quem talvez melhor mesmo fosse todo mundo em homeschooling (Damares Alves, presente!), numa escola sem debate (inclusive dos alunos com o mestre), sem confrontação de ideias, sem estímulo à grande aventura intelectual que é a busca permanente do saber e sem desenvolvimento de senso crítico (Paulo Freire, presente!).

Sim, senhoras e senhores, “senso crítico”: estas duas palavrinhas que tanto geram calafrios e histeria em uma certa turba reacionária, mas que, sejamos práticos e realistas: para além de qualquer discussão de fundo pedagógico, é exatamente o que o mercado liberal busca hoje em dia na potencial mão de obra “contratável” para preencher as posições estratégicas e mais bem remuneradas em suas lucrativas companhias.

Por acaso as maiores empresas brasileiras e mundiais escalam para tais posições aqueles jovens que só sabem dizer “sim, senhor”, “não, senhor” e “glória a vós, Senhor”? Ou acaso dão preferência aos que sabem “pensar fora da caixinha”, porque assim sempre foram encorajados por professores que, em vez de cartazes humilhantes afixados nas paredes da escola, encontraram motivação real para realmente motivar os seus alunos? Pensem nisso.

Além de flagrantemente inconstitucional, o projeto é simplesmente muito equivocado no mérito. É, em essência, um ataque frontal ao magistério, mas, acima de tudo, um grande ataque à liberdade pela qual tanto dizem prezar.

> Marqueteiros de Casagrande são indicados ao Oscar da propaganda eleitoral em Las Vegas

It’s not personal

Nestes dias de tanta beligerância e violência política: minhas críticas e profundas discordâncias aqui registradas se restringem aos projetos de Davi Esmael e Monjardim, bem como ao que, para mim, são paradoxos entre a liberdade que eles dizem defender e o cerceamento à liberdade intrínseco aos projetos de lei em questão.

São dois vereadores a quem muito estimo e respeito, pela seriedade no exercício dos mandatos, pela combatividade em suas causas e, acima de tudo, pelo respeito e civilidade com que sempre trataram a mim e aos profissionais de imprensa em geral.

Minha discordância é no mérito, democraticamente.

E assim é a democracia.

Adendo: por quê?

Para deixar uma última crítica: aqui me ative a problemas que identifico no conteúdo do projeto, porém nem seria preciso gastarmos tanta saliva e caracteres. Do ponto de vista técnico, o projeto Escola sem Partido é gritantemente inconstitucional. Se for aprovado em plenário na Câmara de Vitória (e é muito possível que seja), tem, deixe-me ver… absolutamente zero chance de vingar, virar lei e entrar de fato no ordenamento jurídico municipal.

Entendo perfeitamente, é claro, que os proponentes e apoiadores do projeto não estejam visando tão somente à aprovação e à efetiva implementação da proposta (de resto impossível na prática, por esbarrar em uma série de questões objetivas: quem vai definir, para começar, o que é “doutrinação ideológica”?).

Para além de qualquer consequência prática ou resultado concreto, reavivar este debate conta pontos no Ibope eleitoral para os proponentes e apoiadores da proposta junto ao seu nicho do eleitorado. Nesse sentido, o mero reavivamento desta discussão não deixa de ser uma vitória para eles. Afinal, estamos aqui novamente a escrever sobre o assunto, não é mesmo?

Mas, assim… sinceramente? Podíamos evitar a fadiga.

Leia aqui o que diz exatamente o projeto Escola sem Partido apresentado por Leonardo Monjardim

Leia aqui o que vai acontecer nos passos seguintes em caso de aprovação do projeto pela Câmara de Vitória


Valorizamos sua opinião! Queremos tornar nosso portal ainda melhor para você. Por favor, dedique alguns minutos para responder à nossa pesquisa de satisfação. Sua opinião é importante. Clique aqui

Vitor Vogas

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo, Vitor Vogas tem 39 anos. Formado em Comunicação Social pela Ufes (2007), dedicou toda a sua carreira ao jornalismo político e já cobriu várias eleições. Trabalhou na Rede Gazeta de 2008 a 2011 e de 2014 a 2021, como repórter e colunista da editoria de Política do jornal A Gazeta, além de participações como comentarista na rádio CBN Vitória. Desde março de 2022, atua nos veículos da Rede Capixaba: a TV Capixaba, a Rádio BandNews FM e o Portal ES360. E-mail do colunista: [email protected]

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do ES360.