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Coluna Vitor Vogas

Magno Malta, Bolsonaro e “a ideologia só na esquerda”. Uma reflexão

O que é o bolsonarismo senão uma ideologia? O próprio Bolsonaro não a professa? Magno e tantos não a seguem? Ideologia é um mal por si? Coluna analisa

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Frame de propaganda de Magno Malta no horário eleitoral

Em um áudio enviado à coluna por sua assessoria de imprensa, Magno Malta traçou brevemente os planos eleitorais do Partido Liberal (PL), presidido por ele no Espírito Santo, para as próximas eleições municipais. Numa de suas declarações, ao destacar que o partido só fará alianças eleitorais com outros do mesmo campo partidário, o senador afirmou:

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“Nós estamos conversando nesse espectro partidário. Não falaremos com a esquerda. A esquerda vai caminhar com a própria esquerda. O problema da esquerda é ideológico. O nosso não. Nós somos conservadores. E queremos fazer prefeitos conservadores, vereadores conservadores, para em 2026 a gente ter de fato condição de eleger um governador conservador e um senador conservador. Serão duas vagas, e certamente o PL fará uma novamente.”

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É preciso recortar, destacar e refletir sobre o seguinte fragmento, quase perdido no meio da resposta: “O problema da esquerda é ideológico. O nosso não. Nós somos conservadores.”

É uma declaração incorreta e incoerente, que parte de uma mesma premissa repetida à exaustão por apoiadores de Jair Bolsonaro, ecoando o próprio ex-presidente: a de que, no embate de forças políticas brasileiras, apenas a “esquerda” seria movida por ideologia. Isso não só é falso como intelectualmente desonesto.

É falso, em primeiro lugar, porque pressupõe que ideologias seriam um mal em si mesmas, que defender uma ideologia consistiria em um “problema” e que seria possível exercitar a atividade política sem professar ideologia alguma, quando na verdade o que se dá é exatamente o contrário: convicções ideológicas são indissociáveis da atividade política em seu sentido mais profundo, logo é impossível fazer política de verdade sem manter determinada ideologia – exceção feita àquelas pessoas que só estão na política por outros interesses (cargos, prestígio, influência, dinheiro, poder), sem acreditar nem defender nenhuma ideia, programa etc.

E isso, é óbvio, vale para todos os campos, inclusive para os assim chamados “conservadores”.

Ora, ao proclamar “Nós somos conservadores”, Magno não faz nada além de se posicionar em um campo ideológico e declarar sua posição ideológica: o “conservadorismo”, a “direita conservadora bolsonarista”.

Do mesmo modo, ao sublinhar que o PL só conversa “nesse espectro partidário”, ele cuidadosamente evita o adjetivo “ideológico”, mas o que quer dizer não é nada mais, nada menos, que “o PL só conversa e só firmará alianças com partidos pertencentes ao mesmo campo político-ideológico” – por oposição à ideologia da esquerda.

A premissa de Magno é falsa, em segundo lugar, porque parte daquele pressuposto equivocado de que “a ideologia só existe no outro” – no caso, na esquerda. Ora, o próprio Magno, em sua defesa incondicional do ex-presidente e em sua profissão do bolsonarismo, tem mantido nos últimos anos posicionamentos profundamente ideológicos.

Melhor exemplo disso – ou pior, no teor do que foi dito – foi a desastrosa declaração do senador na semana passada a respeito dos ataques racistas regularmente sofridos pelo jogador Vinícius Jr. nos estádios espanhóis. Em suas lamentáveis palavras, ao criticar a imprensa brasileira pela ampla repercussão dada ao assunto e ao buscar minimizar a gravidade dos episódios, sugerindo que a maior vítima dos ataques racistas em Valencia teria sido o macaco, Magno não fez senão manifestar um posicionamento ideológico, perfeitamente em linha com o do ex-presidente Bolsonaro.

É, sem tirar nem pôr, uma expressão da ideologia bolsonarista em estado puro; uma ideologia de extrema direita que vai muito além do personagem Bolsonaro, mas que nele encontrou sua melhor personificação política no Brasil nos últimos anos; que ataca de maneira permanente e infatigável o trabalho da imprensa profissional, combate direitos humanos e faz pouco das lutas de minorias identitárias contra a discriminação (quando não a pratica).

Na cartilha do bolsonarismo, a qual Magno passou a professar, protestos, ações afirmativas, ações reparatórias na Justiça e novas leis com previsão de penas mais duras para agressores: tudo isso entra no pacote do que deve ser ridicularizado e tratado com desdém, como se não passasse de “vitimismo”, “mimimi” e por aí vai. Foi o que o próprio Bolsonaro sempre fez. É o que seu filho Eduardo Bolsonaro sempre faz. Foi, rigorosamente, o que repetiu Magno em sua fala sobre Vini Jr., ao se queixar de que a imprensa brasileira estaria “revitimizando” o atacante do Real Madrid.

Por fim, a esta altura do campeonato, alguém ainda em sã consciência consegue levar a sério a bravata de que Bolsonaro está “acima de ideologias”?

Ora, no Brasil dos últimos anos, ninguém melhor que o próprio Bolsonaro exemplifica um modo de fazer política radicalmente ideológico.

Em que pesem todas as bravatas eleitoreiras – “política externa sem viés ideológico” etc. –, tudo em seu governo, absolutamente todas as decisões, foram orientadas pelas convicções ideológicas pessoais do presidente (atenção: não as do governo, mas as do próprio presidente), da campanha publicitária do Banco do Brasil à escolha dos seus dois ministros no STF, passando por uma série de outras graves questões, como a atitude oficial do seu governo em relação à pandemia e sua campanha pessoal e incansável contra a vacinação. Ainda podemos citar:

. o isolacionismo na política externa, a humilhante subserviência a Trump e as muitas polêmicas sem sentido, desastrosas em termos econômicos, com a China, a União Europeia, parceiros no Cone Sul etc.;

. o desmonte metódico das políticas de proteção ambiental (“passar a boiada”), em compasso com o favorecimento à atividade ilegal de garimpeiros, madeireiros etc.;

. a política de facilitação do acesso a armas de fogo por civis, bem como o aparelhamento das Forças Armadas e Polícias Militares;

. a guerra diária mantida contra a inteligência crítica brasileira, consubstanciada nos ataques sistemáticos à imprensa, às universidades, a intelectuais, cientistas e artistas;

. o aviltamento de minorias sociais (exemplificada pelas muitas falas sexistas proferidas pelo próprio presidente), além do desmanche das políticas de garantias de direitos humanos em um ministério regido pelo fundamentalismo religioso damaresco;

. o desvirtuamento de instituições do Estado, como o Ministério da Justiça, para perseguir pessoalmente críticos do governo, e de outras, como a Polícia Federal, para proteger parentes e aliados de investigações, e de outras ainda, como a Polícia Rodoviária Federal, para atingir objetivos eleitorais;

. o constante culto à violência, ao preconceito, à ignorância, ao desrespeito e ao obscurantismo, e a adoção da discriminação como critério norteador da definição de políticas públicas;

. o culto ao autoritarismo e o indisfarçado golpismo que, crescente ao longo do governo, tornou-se desbragado na reta final, com os contínuos ataques ao Poder Judiciário do país (notadamente o STF e o TSE), as sistemáticas acusações sem provas contra a integridade das urnas eletrônicas e a lisura do processo eleitoral, as reiteradas declarações de que só aceitaria o resultado em caso de vitória e tudo o que se seguiu à derrota de 30 de outubro.

Se Bolsonaro não fez um governo exorbitantemente “ideológico” e se isso não foi um “problema”, teremos de reescrever em todos os dicionários o significado do verbete “ideologia”.

E o de “problema”.